quinta-feira, 22 de setembro de 2011

CIEJA: SEMINÁRIO 2011

CIEJA: SEMINÁRIO 2011

DESAFIOS DA AFROEDUCAÇÃO - Professor Maurício Waldman*

DESAFIOS DA AFROEDUCAÇÃO

Professor Maurício Waldman*
Poucas legislações colocaram desafios tão instigantes para os profissionais da educação quanto a Lei nº 10.639, a primeira da gestão do presidente Luis Inácio Lula da Silva (09/01/2003).
Explicitamente, a lei tornou obrigatório o ensino de conteúdo programático resgatando a contribuição dos negro-africanos para a formação da sociedade brasileira. E quando se fala em resgatar, recordemos que este verbo também se conjuga com rever.
Afinal quem, exercendo o papel de educador em sala de aula, consegue deixar de perceber que os livros didáticos reproduzem, mesmo que indiretamente, fabulações que discriminam a África, seus povos e suas culturas? Como não notar o padrão eurocêntrico que perpassa pelo currículo escolar e as estratégias que tornam invisível a contribuição da África e dos afrodescendentes?
Trata-se de uma reflexão colocada para todas as disciplinas, inclusive, é óbvio, para a geografia. Neste caso específico, basta prestar atenção para as referências cartográficas, imagéticas e para a repetição de velhos jargões como os do tribalismo, da feitiçaria, do atraso e para completar, da “ausência” de civilização no continente africano, estereótipos que colonizam os materiais didáticos de modo cabal.
É evidente que tais ponderações dizem respeito ao conjunto das disciplinas e dos procedimentos pedagógicos que moldam a forma de ver e de entender o mundo por parte dos estudantes brasileiros. Hoje, a grade curricular repete estigmas prestigiados por modelos negadores da especificidade da África e dos seus dinamismos. Razões que sugerem discutir, com muita prontidão, o que a Lei nº 10.639 estabelece.
Note-se que a legislação cita expressamente as disciplinas de história, educação artística e literatura para a prática pedagógica em afroeducação. Outro ângulo bastante sugestivo é que a legislação originou-se das reivindicações de diversos movimentos sociais - particularmente dos empenhados com a causa negra - mantendo, deste modo, vínculo umbilical com as propostas de ação afirmativa.
As chamadas políticas de ação afirmativa constituem amplo leque de proposições com a meta de eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades, bem como ultrapassar obstáculos resultantes do racismo. Nesta consideração se enquadra a discriminação de ordem religiosa, de gênero, étnica e racial.
Devemos lembrar que a Lei nº 10.639 vincula-se a uma segunda legislação, bem mais detalhada. Trata-se do Decreto nº 4.886 (20/11/2003), estabelecendo a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, o PNPIR. Assim, a questão da pluralidade racial brasileira no processo educativo está ancorada como prioridade em dois instrumentos jurídicos, centrados especialmente na população negra do nosso país.
Debate em si mesmo polêmico, ambas as leis suscitaram todo tipo de reações. Com relação à Lei nº 10.639, paralelamente às manifestações de apoio, existiram protestos no meio educacional contrários à sua aplicação. Uma das objeções é a de que a lei seria desnecessária e até mesmo de índole autoritária.
Nesta alegação, o novo corpo jurídico seria equivocado em função da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (a LDB, aprovada em 1996), já considerar que o ensino no Brasil deveria levar em conta as diferentes contribuições étnicas para a formação do povo brasileiro. Isto é, as matrizes européia, indígena e africana.
Mas, ainda que a LDB apresentasse tal direcionamento, na prática, nada disto aconteceu. Quem desconhece que o continente africano é, no livro didático de geografia, o penúltimo ou o último a ser estudado? Mesmo quando isto ocorre, quais são os conteúdos transmitidos? Por fim, quem alegaria desconhecer que as estereotipias cultivadas para a África se dissociam da marginalização de milhões de descendentes de africanos e do seu acervo cultural?
Indiscutivelmente, no Brasil os afrodescendentes são agraciados com os piores indicadores políticos, sociais, educacionais e econômicos. Mesmo formando contingente populacional apreciável - entre 40 e 60% da população do país - constituem grupo desqualificado com base em séculos de discriminação. A condição vivida pelos afrodescendentes não decorre de fatores meramente “sociais” ou “educacionais”, conforme advoga singular corrente de opinião.
A respeito, basta lembrar a condenação do Brasil no caso Simone Diniz, pela Comissão de Direitos Humanos da OEA (2006). Tratando-se de um dos muitos casos de racismo institucional que afeta os negros brasileiros, Simone foi excluída de processo de seleção empregatício por conta de preconceito racial. Teve que recorrer aos tribunais interamericanos após o próprio ministério público ter arquivado sua denúncia, bloqueando ação penal. Dirimindo eventuais dúvidas, a Comissão da OEA julgou existir falha do Estado brasileiro, incluindo omissão em fazer cessar a discriminação racial e distribuir justiça.
Em coerência com o que foi colocado, é compreensível a necessidade de consolidação e de ampliação do alcance da Lei 10.639 para o conjunto das disciplinas responsáveis pela formação do futuro cidadão brasileiro.
Sublinhe-se o vínculo das ações afirmativas com o ativismo social. Não há de fortuito no fato da Lei 10.639 destacar a história, literatura e educação artística. Na realidade, o destaque destas disciplinas derivou da militância de longa data dos profissionais destas áreas, que se distinguiram em posicionar o papel da África e da sua contribuição, algo que não encontrou respaldo na pauta de outros especialistas.

Neste sentido, não só a história, educação artística e a literatura, mas também a educação física, biologia, e obviamente a geografia, podem contribuir - e muito - para o resgate da temática africana em sala de aula.
Certamente, o que foi colocado sugere que o conjunto do professorado se dedique - preferencialmente de modo imediato - em prol da aplicação, no campo dos seus conhecimentos específicos, das metas desta notável legislação que é a Lei 10.639.
Poucas ocasiões tem sido tão propícias para dinamizar debates de alcance como este, revendo a África no mapa do mundo e resgatando a contribuição negra no espaço de vida dos brasileiros.
Uma rara oportunidade para os educadores notabilizarem sua inventividade e disposição em gerar conhecimento que expresse a pluralidade cultural brasileira.
Espaço de Zumbi, Espaço da afroeducação: Espaço do povo brasileiro!
Abaixo, alguns livros do autor:

LIXO: CENÁRIOS E DESAFIOS

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MEMÓRIA D’ÁFRICA:
a temática africana em sala de aula
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*Consultor Ambiental. Pós-Doutorando do Depto de Geografia da UNICAMP, Instituto de Geociências. Bolsista do CNPq. Autor de Lixo: Cenários e Desafios(Cortez Editora, 2010).
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