Matéria publicada em 2010, mas nunca é demais relembrar nossos verdadeiros heróis que sempre foram injustiçados pela história e pela mídia em geral
Luiz
Carcerelli
Após a decretação da Lei de Terras, em
1850, ficou determinado que a terra só poderia ser adquirida pela compra e os
ex-escravos ficaram impossibilitados de ter acesso à terra. Com a publicação da
"Lei Áurea" em 1888, uma alternativa para os negros passou a ser
o trabalho, como marujo, na Marinha de Guerra do
Brasil. Nos navios, no entanto, as humilhações, exploração e brutalidade do
tempo da escravidão não haviam findado, eram permitidos os castigos físicos
contra os marinheiros que infringissem as regras draconianas. Obviamente, para
o oficialato as regras eram outras. Tal fato diminuía o número de voluntários,
que eram supridos com o recrutamento forçado, feito pela polícia. Tais castigos
foram abolidos quando da Proclamação da República e restabelecidos um ano
depois. Estavam previstas as seguintes penalidades:
"Para as faltas leves, prisão a
ferro na solitária, por um a cinco dias, a pão e água; faltas leves repetidas,
idem, por seis dias, no mínimo; faltas graves, vinte e cinco chibatadas, no
mínimo."
AS MELHORES INFLUÊNCIAS
Em 15 anos de carreira militar, João Cândido fez várias
viagens pelo Brasil e por vários países, mas a que maior influência teve sobre
ele foi para a Grã Bretanha em 1909, para acompanhar o final da construção de
navios de guerra encomendados pelo governo brasileiro. Lá, além de vivenciar a
diferença com a qual eram tratados os marujos britânicos e os brasileiros,
tomou consciência da revolta do navio russo Encouraçado Potenkin, em 1905.
Ainda na Inglaterra, João Cândido montou clandestinamente
um Comitê Geral para preparar a revolta. Esse comitê se ramificou em vários
comitês revolucionários em diferentes navios. Em 1910, no Rio de Janeiro, se
junta ao comitê Francisco Dias Martins, o Mão Negra, que havia ficado conhecido
pela carta que escreveu sob este pseudônimo, denunciando a chibata.
Na noite de 22 de novembro de 1910, amotinou-se a
tripulação do Encouraçado Minas Gerais. Quando o comandante retornou de um
jantar em navio francês, tentou resistir e foi morto a tiros e coronhadas. Além
deles, outros cinco oficiais foram executados. Alertados por um tenente ferido,
os oficiais do Encouraçado São Paulo debandaram para terra e essa unidade da
Armada também aderiu ao levante. O mesmo aconteceu com o Deodoro e com o
Cruzador Bahia, além de embarcações menores, fundeadas na Baía de Guanabara.
Na manhã do dia 23, de posse dos navios e das armas, os
marinheiros sublevados apresentaram ultimatum, ameaçando abrir
fogo sobre a Capital Federal. João Cândido, o Almirante Negro, como ficou
conhecido, liderava a revolta e a redação do documento foi de Francisco Dias
Martins. Dizia a carta:
"O governo tem que acabar com os
castigos corporais, melhorar nossa comida e dar anistia a todos os revoltosos.
Senão, a gente bombardeia a cidade, dentro de 12 horas."
"Não queremos a volta da chibata.
Isso pedimos ao presidente da República e ao ministro da Marinha. Queremos a
resposta já e já. Caso não a tenhamos, bombardearemos as cidades e os navios
que não se revoltarem."
A Marinha esboçou um ataque com dois navios menores,
prontamente repelidos pelos revoltosos que abriram fogo contra a Ilha das
Cobras (base naval) e dispararam tiros de advertência sobre o Palácio do Catete
(sede do executivo).
Surpreendido e temendo o combate, o Estado brasileiro na
pessoa do marechal Hermes da Fonseca, então presidente da República, aceitou as
exigências dos revoltosos. Mas a estratégia do governo ficaria clara alguns
dias depois.
Hermes da Fonseca abole os castigos físicos e promete
anistia para os que se entregassem. Os marinheiros depõem as armas e sucede-se
o que sempre acontece quando se confia em um Estado reacionário.
A reação desencadeou feroz perseguição aos marinheiros
revoltosos. Às dezenas, os marujos foram encarcerados em porões de navios ou
nas masmorras da Ilha das Cobras. O barco de guerra Satélite foi palco de
numerosos fuzilamentos.
Já no dia 28 de novembro, alguns marujos são expulsos da
Armada por serem "inconvenientes à disciplina". No dia 4 de dezembro,
quatro marinheiros foram presos acusados de conspiração. Muito desorganizados,
no dia 9, os fuzileiros navais da Ilha das Cobras sublevam-se e são duramente
bombardeados, mesmo tendo hasteado a bandeira branca. Dos 600, sobrevivem
apenas cem. Na sequência, vários foram desterrados e condenados a trabalhos forçados nos seringais da
Amazônia, sendo que sete foram assassinados no caminho.
Mas esses monstruosos crimes não foram capazes de quebrar
a rebeldia dos marinheiros. Muitos participantes da rebelião de 1910 ligaram-se
anos depois ao movimento revolucionário. O marinheiro Normando, comandante de
um dos barcos rebelados, ingressou nas fileiras do Partido Comunista do Brasil
– PCB. Em 1924, os marinheiros novamente sublevaram-se no encouraçado São
Paulo. Em 1935, incorporaram-se às centenas à luta da Aliança Nacional
Libertadora e mais tarde, em 1964, compuseram a linha de frente da resistência
contra o gerenciamento militar-fascista.
O ódio zoológico nutrido pela oficialidade da Marinha a
João Cândido manteve-se irretocado e foi renovado ano após ano. Em 6 de
dezembro de 1969, o líder da rebelião da esquadra de 1910 faleceu sem receber
nenhum centavo da marinha.
Ainda na década de 1970, a reação destilava seu veneno
contra João Cândido e seus companheiros. A censura do gerenciamento militar
mutilou a bela música de João Bosco e Aldir Blanc, O mestre sala dos
mares, trocando as palavras marinheiro por feiticeiro, almirante por
navegante, bloco de fragatas por alegria das regatas, e outras mais, tirando
muito de sua força.
Em 22 de Novembro de 2007, quando se completaram 97 anos
da Revolta, foi inaugurada uma estátua em homenagem ao "Almirante
Negro" nos jardins do Museu da República, antigo Palácio do Catete. A
estátua, de corpo inteiro, de João Cândido com o leme em suas mãos, foi afixada
de frente para o mar.
Em 24 de julho de 2008, 39 anos depois da morte de João
Cândido, publicou-se, no Diário Oficial da União, a Lei Nº 11.756 que concedeu
"anistia" ao líder da Revolta da Chibata e a seus companheiros. No
entanto, a lei foi vetada na parte em que determinava a reintegração de João
Cândido à Marinha do Brasil o reconhecimento de sua patente e devidas promoções
e o pagamento de todos os seus direitos e de
seus familiares.
Em 20 de Novembro de 2008, a estátua do Almirante Negro
foi retirada do Palácio Catete e colocada na Praça Quinze de Novembro, no
Centro da cidade do Rio de Janeiro. Lá, às margens da Baia da Guanabara, a
imponente figura de João Cândido certamente está mais à vontade, entre os
populares que passam e param para lhe render homenagem, entre tantos filhos do
povo como ele negros, pobres, explorados, revoltosos.
O Mestre Sala dos Mares
(João Bosco / Aldir Blanc)
Composição original
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o almirante negro
Tinha a dignidade de um mestre sala
E ao navegar pelo mar com seu bloco de fragatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
dos negros pelas pontas das chibatas
Inundando o coração de toda tripulação
Que a exemplo do marinheiro gritava então
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o almirante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
Mas faz muito tempo
(João Bosco / Aldir Blanc)
Composição original
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o almirante negro
Tinha a dignidade de um mestre sala
E ao navegar pelo mar com seu bloco de fragatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam das costas
dos negros pelas pontas das chibatas
Inundando o coração de toda tripulação
Que a exemplo do marinheiro gritava então
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o almirante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
Mas faz muito tempo