A REDESCOBERTA DA ÁFRICA
MAURÍCIO WALDMAN 1
Transcrição de Conferência proferida pelo
Professor Maurício Waldman, no dia 25 de junho de 2009, entre as 20:00 e as
22:00 horas, no encerramento do Curso Introdução
aos Estudos de África, promovido pelo Centro de Estudos Africanos da
Universidade de São Paulo (CEA-USP).
ABERTURA DO EVENTO PELO PROFESSOR CARLOS
SERRANO
Boa noite a todos.
Como atividade do dia de hoje, convidamos
o professor Maurício Waldman para palestrar sobre um assunto muito importante: A Temática Africana em Sala de Aula.
A ideia do evento foi fechar o Curso
de Difusão Cultural do Centro de Estudos Africanos 2009 com uma atividade que não fosse
uma aula regular e que tivesse a capacidade de finalizar o curso com uma
contribuição essencial. O professor Kabengele Munanga, atual diretor do CEA,
entendeu que seria pertinente convidar o professor Maurício para assumir esta
responsabilidade.
Vocês já conhecem o Maurício de nome, pois
foi citado ao longo das aulas do curso. O Maurício foi aluno desta
universidade no curso de graduação em ciências sociais, também fazendo na USP
seu mestrado em antropologia e seu doutorado em geografia. Ele colabora com o
CEA desde 1982, é pesquisador africanista, autor de muitos textos sobre
afro-educação e, além disso, possui muita experiência em cursos de capacitação.
Outra frente de atuação do Maurício é na questão ambiental, tema sobre o qual
escreveu muitos livros e artigos.
Eu e o Maurício desempenhamos muitos
trabalhos em comum. Escrevemos a quatro mãos a obra Memória D’África, da Cortez
Editora, que sintetiza trinta anos de atividades conjuntas. Como vocês poderão
perceber, ele tem muito a dizer. Sua fala é alegre, descontraída e ao mesmo
tempo, bem fundamentada. Esta é uma marca do Maurício.
Agradeço, pois ao Professor Maurício por
atender ao convite do CEA. Passo então a palavra a ele.
CONFERÊNCIA DO PROFESSOR MAURÍCIO WALDMAN
Boa noite a todos.
Foi com enorme satisfação que recebi o
convite do professor Kabengele Munanga para estar aqui nesta noite com vocês
para fechar, com uma conferência, o Curso
de Difusão Cultura do CEA de 2009: Introdução aos Estudos de África. Sem
meias palavras, senti-me prestigiado pelo convite e é com muita honra que estou
comparecendo a este evento.
Como é de conhecimento de todos, o CEA é
uma instituição pioneira em escala nacional na divulgação de conhecimentos
sobre o continente africano. O curso promovido pela entidade tem se posicionado
como uma referência para uma coleção de atores sociais, dentre os quais o
movimento negro e o professorado em geral. Portanto, agradeço primeiramente ao
professor Kabengele e ao CEA pelo convite. Sou grato também pela gentileza do
professor Serrano em me apresentar e fazer as honras da casa. Como ele disse,
nos conhecemos desde longa data e realizamos muitas iniciativas em comum.
Na noite de hoje, conforme programado,
estarei expondo sobre A
Temática Africana em Sala de Aula. Esta conferência é, em conformidade com
o que o Serrano disse, uma grande responsabilidade. Vocês tiveram aulas ao
longo de quatro meses e não sei qual foi o conteúdo exato que vocês usufruíram
neste lapso de tempo. Contudo, conhecendo as atividades do CEA, sei da direção
do debate e do sentido que perpassou na fala dos professores do curso.
Neste sentido, a responsabilidade recai
mais em fazer um balanço final, em fazer uma exposição articulada com o que
vocês já aprenderam e particularmente, em se tratando de uma atividade de
encerramento de um curso, de abrir um entendimento para que todos prossigam na
rota da afro-educação, de modo a contribuir a consolidação da cidadania e a
construção de um país digno para todos os seus habitantes, em especial para a
população afro-descendente.
Antes de iniciar, vou falar um pouco da
minha trajetória e da minha produção intelectual. Até porque, esta última
confunde-se com um percurso pessoal no campo das ideias. Assim, farei um breve
comentário a respeito das publicações que escrevi ou participei como coautor,
em especial das que possuem proximidade com o tema de hoje. Quanto à
bibliografia, estarei encaminhando proximamente uma série de indicações de
textos informativos, acadêmicos ou para debate em sala de aula.
Entendo que são referências adequadas para
aqueles que participaram de um curso como o promovido pelo CEA, tanto como
fonte bibliográfica quanto subsídio para atuação em sala de aula. No que diz
respeito a esta conferência, os que estão aqui presentes receberão em primeira
mão o texto-base desta conferência, que posteriormente terá uma divulgação mais
ampla.
Iniciando pois os comentários sobre a
minha produção, mencionaria primeiramente a coleção que escrevi para Editora
Suplegraf: Geografia para o
Ensino Fundamental. Gosto de comentar sobre esta publicação porque sendo eu
professor de geografia, a forma como a África é trabalhada no livro didático
sempre me incomodou.
Vejamos: quando estudamos os continentes,
qual é o primeiro a ser estudado? Todo mundo sabe, é a Europa. E depois, o que
vem a seguir? É a América. Quando o professor esgota o capítulo de América, já
estamos no meio do ano letivo e faltam outros três continentes para serem
estudados. Mas como se sabe, no terceiro bimestre o continente estudado é a
Ásia. Bem, quando se chega no quarto bimestre, com o final do ano a
vista, geralmente os conteúdos são sacrificados, os programas são sintetizados
e se valoriza aquilo que é considerado mais importante, mais essencial,
indispensável. Neste contexto, não é que muitas escolas optam por centrar suas atenções na Oceania? Certo é que fica “restando” a África. Como é que fica? Então para se resolver
o problema muitas escolas apelam para o famoso “trabalhinho”, um questionário
tipo pergunta- resposta para justificar a nota de aproveitamento. E isso só
quando o tal do “trabalhinho” é solicitado.
Indo direto ao ponto: ninguém estuda a
África! E uma das causas, é justamente a grade curricular tradicional. Porém,
sendo eu um autor de livros didáticos, adotei uma postura radical para
solucionar esta questão. Na minha coleção de geografia, coloquei a África como
primeiro capítulo, como matéria do primeiro bimestre. Nem mais, nem menos.
Deste modo, ensinar sobre o continente se tornaria obrigatório. Pensei comigo
mesmo: quero ver como agora vai ser! Claro que a proposta causou certo
rebuliço. Como seria cabível imaginar, muita gente não entendeu.
Não faltou quem estranhasse uma
organização dos capítulos de geografia dos continentes
tendo a África como o primeiro ponto. Indagavam-me: porque “logo a
África” em primeiro lugar? Qual é a razão? Então eu respondia: a África é o
berço da humanidade; neste continente foram criadas as primeiras regras
sociais, de estética, de organização política e transformação do espaço
geográfico; na África se organizaram as primeiras civilizações, como foi o caso
da egípcia.
Além do mais, o nosso país - conforme irei
detalhar mais adiante - é intensamente africanizado. Pelo mínimo 40% da
população do nosso país é afro-descendente. Deste modo, porque começar o ensino
da geografia dos continentes com a Europa? Absurdo, pois nós não somos europeus
e não moramos na Europa. Seguramente, isto não faz qualquer sentido nem para o
povo, nem para o estudante brasileiro e nem para ninguém. Só para quem
considera que a Europa é o centro das atenções.
Outro aspecto é que mesmo quando o
continente é estudado, quando o professor se dispõe a abrir espaço para o
ensino do continente, quais são as informações que são passadas sobre a África?
Será que o livro didático ajuda em alguma coisa? Contempla esta preocupação?
Neste caso, mencionaria além do meu
material na Editora Didática Suplegraf, a Coleção
do Projeto Tecendo o Saber, produzida sob os auspícios da Fundação Roberto
Marinho e Fundação Vale do Rio Doce, da qual fui um dos oito coautores. Formada
por doze livros e 75 vídeos, nesta coleção, na qual uma das minhas contribuições foi com
a parte relacionada com a África Negra, trabalhei várias posturas que julgo
serem fundamentais para uma atuação justa, séria e decente relativamente a
afro-educação. Em outras palavras, que devemos contestar as visões que
circunscrevem a África como um corolário de tragédias, de exotismo cultural, de
primitivismo, de sofrimentos sem fim e das chamadas “guerras tribais” 2, enfoques
sempre acompanhados de alguma iconografia trágica.
Tudo isso é em boa parte reforçado por uma
mídia que constantemente atualiza as estereotipias imputadas ao
continente. E estereotipia, devo recordar, é uma palavra que significa dar
materialidade a algo que é imaginário. Isto é, estamos lidando com uma máquina
de produção de imagens que foi e é responsável por gerar dor, sofrimento e
discriminação, cabendo a todos que atuam em sala de aula refutar e combater.
Por exemplo, sempre me recordo que em 1996, durante uma viajem do então
presidente Fernando Henrique Cardoso à África, uma importante emissora de
televisão informou que o mandatário tinha chegado à Luanda,
Na África? Como assim na África?
Pelo que parece, os responsáveis pelo noticiário ainda não tinham entendido que
o continente possui mais de cinquenta Estados independentes e que África,
simplesmente não é um país. Nunca escutei um repórter falar de Tóquio, na Ásia
ou de Londres, na Europa! Eles falam da capital do Japão e do Reino Unido.
Então deveriam falar de Luanda como capital de Angola, aliás uma nação que como
a Nigéria e o Benin, possui forte relação com o Brasil e que portanto, não
haveria como não ser referendada.
Pior ainda é perceber que esta tendência
insidiosa aparece de vários outros modos. Ainda recentemente, no ano passado,
um site de notícias apresentou numa manchete a informação de que o Rally Paris-Dakar teria sido suspenso
por conta da turbulência na
África. Turbulência na África? Ora o trajeto do citado Rally não percorre todo o continente e
passa somente por três países africanos: o Senegal, a Mauritânia e o Marrocos,
dos quais apenas a Mauritânia apresentava na ocasião distúrbios internos.
Ora, porque então falar em turbulência na África? Percebam
que ninguém fala de jogo suspenso em campeonato de futebol motivado por
conflitos na América do Sul. Nesta perspectiva, o que temos é um preconceito
fortemente enraizado na sociedade que é catalisado ou reforçado pela rede
midiática, sendo nossa missão enquanto professores repudiar a todo o momento
esta propensão em desqualificar o continente.
Destaque-se que esta tendência não existe
apenas no plano dos meios de comunicação, que reproduzem, conforme sugeri, uma
ideologia discriminatória que contagia larga porção do edifício social
brasileiro. Ela também se faz presente no plano das ideias, das interpretações
que em nome da ciência se colocaram a serviço da submissão da África e dos
africanos. Daí que além do ativismo social, é preciso igualmente combater
o racismo com produção acadêmica.
Foi assim que terminei me envolvendo com a
elaboração de obras de capacitação como Memória
D’África e de papers centrados na questão da
discriminação racial e do conhecimento africanista. Dentre os textos que
escrevi, faço notar os publicados pela revista
GeoUSP, do departamento de pós-graduação em geografia da Universidade de
São Paulo e pela revista
África, editada pelo CEA.
Nesta última revista, publiquei o artigo Africanidade, Espaço e Tradição,
um trabalho de conclusão escrito em 1993 para o curso do professor Fábio Leite,
daqui do CEA. O foco deste paper é a oralidade e topologia
tradicional africana tendo por base o relato griot sobre o imperador Sundjata Keita,
do Mali.
Para muita satisfação de minha parte, em
2007 este texto foi considerado internacionalmente relevante pelo Centre National de la Recherche
Scientifique (CNRS), o maior
e mais influente organismo de pesquisa científica pública do governo francês.
Confesso que me senti extremamente gratificado com essa indicação. Trata-se,
devo enfatizar, de um dos raros textos acadêmicos nacionais agraciados com esta
verdadeira honraria, um paper publicado primeiramente pelo CEA.
Valeria também a pena mencionar que
trabalho com outras temáticas, dentre as quais as relacionadas com a questão
ambiental. Ao contrário de muitos acadêmicos, não me restringi a dar aulas ou
produzir textos, pois sou igualmente um veterano da mobilização ecológica no
estado de São Paulo. Conforme costumo dizer, ecologia
é um modo e não um meio de vida. Mais ainda: quem fala de ecologia tem por
obrigação que praticar esta ideia, e não se resumir a sugerir sucedâneos de
atitude e falar sobre coisas que não quer e nem sabe colocar em prática.
Assim, se alguém daqui da sala ouvir falar
da minha pessoa como ambientalista, não pense tratar-se de algum engano ou de
algum homônimo. Sou africanista e sou ecologista, com muitos livros e artigos
publicados na área ambiental. Meu mais recente lançamento é Meio Ambiente & Antropologia,
publicado pela Editora SENAC em 2006. É um material que traz informação e
discussão sobre a relação das sociedades com o meio ambiente, inclusive no que
tange à África tradicional.
Na problemática com o meio ambiente, meu
foco central atende para as questões que julgo dizerem respeito aos cidadãos
que habitam as metrópoles. Dentre estas, particularmente as temáticas do meio
urbano, da educação ambiental, da água potável, do lixo e da matriz energética.
De resto, sou frequentemente entrevistado e inclusive, fui matéria de capa na
revista Ambiente Urbano,
do Instituto Triângulo, com a qual mantenho muita sintonia em termos do
entendimento da questão ambiental. Por fim, maiores informações a meu respeito
podem ser encontradas no Portal
do Professor Maurício Waldman: www.mw.pro.br.
Isto posto e indo ao que interessa, vou
primeiramente polemizar sobre a questão da imagem que é construída sobre a
África e sobre as estereotipias que lhes são impostas. Trata-se de um processo
que formata uma percepção pejorativa que se transforma em uma verdade tendo por
estratégia básica a repetição. Neste sentido, uma polêmica interessante
refere-se à própria forma como a cartografia construiu a imagem do continente e
os pressupostos culturais que referendam ideologicamente a exclusão dos
africanos. Pensando- se, por exemplo, fotografias de satélite como as que foram
obtidas pela Pionner X, sonda espacial norte- americana, fica evidente que a
África forma uma unidade territorial em seu stricto sensu. Trata-se da mais coesa e
compacta massa continental do mundo. Sua vastidão é notória. A África equivale
a 25% do total de terras emersas do globo, ou seja, uma quarta parte do total.
Dito de outra forma: é impossível não perceber que a África existe. Repito:
impossível!
Outra nuança que podemos destacar quanto à
configuração territorial da África, é o fato de estar cercada por todos os
lados por imensas massas oceânicas. É como se o continente fosse uma ilha
gigantesca, ligada ao Oriente Médio e ao Velho Mundo apenas pelo Istmo de Suez,
cortado desde o século XIX pelo canal construído por Ferdinand de
Lesseps. Por outro lado, isto não significa que a África seja ou tenha sido um
continente isolado. Caso assim fosse, o homem, que como sabemos surgiu na
África, não teria povoado outros recantos do globo. Historicamente os africanos
mantiveram contatos com povos de outros pontos do globo e os intercâmbios
culturais foram intensos. Fluxos e refluxos de migrações, geralmente por
pequenos grupos e de modo não violento, foram lentamente sedimentando
contribuições culturais de todo o tipo, de modo que a influência do continente se alastrou para todos os lados, modelando diversificado rol de fisionomias culturais.
Mas, se a presença da África no mundo se
impõe, conforme disse, por si mesma, como será que esta relevância foi
consignada no imaginário? Inegavelmente, os nossos olhos ao verem a África nas
fotografias de satélite não podem deixar de captar sua grandiosidade. Todavia,
será que aquilo que os nossos olhos percebem corresponde à imagem construída
sobre esta massa continental? Bem, para responder esta pergunta podemos
recorrer à forma como a produção cartográfica europeia construiu a imagem do
continente. Neste particular, é possível notar um claro regime de exclusão
simbólica do continente, que se consolidou ao longo da história de um modo cada
vez mais claro, sendo uma das suas manifestações mais pungentes a
desqualificação dos seus povos e suas culturas.
O famoso Mapa
dos Salmos (ou Psalter), datado de 1250, é uma
das alegorias cartográficas que ilustram este código topológico de exclusão,
evidenciando uma série de estereótipos que até hoje estigmatizam o continente
inteiro. Neste mapa, aparece claramente a indicação do Paraíso e de Cristo,
redentor da humanidade, posicionados na direção Norte. Nesta parte do mapa,
encontramos a Europa à direita de Cristo e a Ásia, à sua esquerda. Por sua vez,
acatando uma pretensa genealogia baseada em relatos bíblicos, esta carta geográfica
enquadra a África na posição Sul, definida como um “continente negro e
monstruoso”, ocupado pelos descendentes de Cam, considerado amaldiçoado pela
tradição bíblica 3.
O ideário religioso que perpassa por esta
construção cartográfica articula um código espacial impregnado com traços
meliorativos e pejorativos, através dos quais os diferentes povos são
dignificados ou rebaixados. Fato evidente, nesta
construção mitológica a África está retratada como um conjunto de terras
situadas abaixo do espaço europeu, na subalterna posição sul, portanto,
simbolicamente estigmatizada como inferior.
Além da inferioridade, neste esquema o
continente incorpora muitos outros estigmas pertinentes a um jogo de
oposições binárias radicais, um modelo típico da inculturação ocidental. À
noção de inferioridade, o continente também agrega a condição de ser atrasado (em oposição a desenvolvido), tórrido (em oposição a temperado), irracional (em oposição à razão), natural (em contraposição a artificial), externo (em dissociação ao que seria
interno), selvagem (em oposição a civilizado), negro (em oposição a branco), de infernal (em oposição a celestial) e assim
por diante
Contemplado com estigmas de
subalternidade, o continente passou a aludir formas de representação
preocupadas em confirmar esta visão excludente junto aos mapas. Recordo que a despeito
de serem considerados como uma “peça técnica”, os mapas sumamente condensam uma
imagem socialmente construída do mundo. Assim, se observarmos atentamente o
Mapa Mundi confeccionado na projeção de Mercator 4, criado no
bojo da expansão mercantilista, podemos perceber a reedição de velhos mitos,
tais como os credenciados no Mapa
dos Salmos.
Retenha-se que o Mapa de Mercator consagra à Europa a sugestiva
posição Norte, superior dos
mapas, prerrogativa esta reforçada agora pela centralidade. Com efeito,
todos os continentes estão representados ao redor do europeu, que
majestosamente impera subordinando os demais. Esta disposição “clássica” dos
continentes tornou-se uma espécie de senso comum cartográfico. Isto é
facilmente comprovado quando folheamos qualquer livro de geografia. Ademais,
repetida à exaustão, conquistou foro de verdade inquestionável.
Outro aspecto que denuncia a
desqualificação, é o que se refere à imagem que surge a partir das projeções
cartográficas. Como sabemos a transposição da imagem de uma esfera
tridimensional (a Terra) para um plano bidimensional (o planisfério ou mapa)
necessariamente envolve distorções, atenuadas, exaltadas ou atenuadas em função
do tipo de projeção que utilizamos. Mas, uma vez que existem formas
alternativas para representar o mundo, faria sentido interrogar sobre a
pertinência das representações que nos são oferecidas no nascedouro do nosso
desenvolvimento pedagógico. Essa consideração é importante pois com efeito, a
primeira imagem que experimentamos a respeito da África é aquela que nos é
descortinada pelo Mapa Mundi nos primeiros anos da nossa vida escolar.
Nesta linha de argumentação, podemos, por
exemplo, comparar a projeção de Mercator com a de Peters. Ora, comparativamente
à África chamaria a atenção de qualquer observador a enormidade do continente
europeu no Mapa de Mercator assim como inversamente, o quanto a Europa diminui
no Mapa de Peters, ao mesmo tempo em que a África conquista expressão.
Outro exemplo é a Groenlândia. Esta ilha,
embora possuindo uma área quatorze vezes menor do que o continente africano
aparenta no Mapa de Mercator ser pelo mínimo equivalente à África em extensão.
Já no Mapa de Peters as dimensões dessa ilha, mais próximas da realidade, são
bem diferentes, isto é, muito inferiores às da África. Apesar de projeções como
as de Peters recuperarem imageticamente uma representação mais próxima do real
no referente às dimensões dos continentes, note-se que são abundantes os mapas
que inferiorizam a magnitude espacial do continente africano. Assim sendo, nunca
seria demasiado investigar o tipo de projeção do mapa que estamos estudando. As
diferenças, a começar pela comparação com as imagens de satélite, podem ser gritantes!
Evidentemente, esta máquina de dominação
ideológica não se restringiu à percepção do continente, se estendendo também
aos seus habitantes. Alavancado pelo comércio de escravos, o racismo tornou-se
indissociável de um imaginário de exclusão, patente na totalidade do edifício
social, fato que de resto, é atestado por meio de inúmeras peças culturais.
Uma das que podemos citar é o quadro A Redenção de Cam, do pintor
Modesto Brocos, artista espanhol radicado no Brasil. Trata-se de uma imagem
emblemática da discriminação, um quadro pintado num momento (1895) no qual o
país acelerava o processo de implantação do trabalho assalariado com base na
imigração, uma política que de resto, atendia ao desejo das elites em
“embranquecer” o país.
O quadro mostra em seu centro uma mãe
mestiça segurando seu filho branco, com uma avó negra abençoando o rebento,
implicitamente simbolizando a libertação da amaldiçoada condição de camita. Conclusão: a redenção apenas existe
quanto os negros se tornam brancos! Pois
bem, demonstrando a incrível força e virulência dos estigmas impostos ao
continente e aos seus povos, notem que são mais de sete séculos que separam
este quadro do Mapa do Salmo.
Todavia, os códigos culturais de exclusão são absolutamente os mesmos!
Claro está que num país como o Brasil,
todo ele perpassado pela africanidade, o preconceito racial torna-se
particularmente grave. Uma vez que as influências africanas estão disseminadas
em todos os ângulos da realidade nacional, cria-se uma relação contraditória e
esquizofrênica com a nossa identidade enquanto povo, nação e cultura, com a
nossa própria forma de ser e de enxergar o mundo.
Vamos ver então: a corporalidade do
brasileiro é africana; nossa forma de falar revela influência dos povos
africanos; no plano da religiosidade, das crenças, do folclore, da dança, da
música e em muitos outros ângulos da nossa cultura, todos nós somos africanos. Daí que
costumo dizer aos meus alunos que ninguém precisa ir para a África para
conhecer o continente. Basta conhecer melhor o que nós somos e reconhecer o que
está à vista de todos. É claro que o nosso sistema de ensino não trabalha neste
sentido. Pelo contrário, as crianças aprendem na escola uma história europeia e
uma geografia que legitima objeções espaciais que adjetivam negativamente o
continente. Certamente, precisamos colocar um ponto final nesta sucessão de
absurdos. Para tanto, devemos começar a olhar o nosso
país com outros olhos, preferencialmente de modo imediato.
Para começo de conversa, do ponto de vista
geológico o Brasil e a África, a 300 milhões de anos atrás, faziam parte de uma
mesma massa continental. Por isso, no âmbito da geografia física, encontramos
tantas analogias nos dois lados do Atlântico. Paralelamente, ambos compartilham
uma extensa relação de dados naturais, que contribuem para irmanar o continente
africano e o nosso país.
Nesta perspectiva, um dado essencial
reporta ao domínio da tropicalidade. O Brasil e a África constituem as duas
maiores superfícies terrestres banhadas pelo Sol. O Brasil é o maior país solar
do mundo e a África, o maior domínio continental banhado pelos raios do
astro-rei. A condição de tropicalidade do continente é de resto manifesta
quando se sabe que as linhas dos Trópicos - de Câncer e de Capricórnio -
enquadram 80% da África na faixa intertropical. Aliás, o próprio nome “África”
denunciaria esta condição solar: sua origem provém de uma palavra berbere
- Afri - que mais tarde se desdobrou em África. Embora de difícil
averiguação, o significado do termo, de acordo com vários autores, relaciona-se
com a ideia de ausência de frio, de calor.
É a forte presença da tropicalidade que
explica a existência de paisagens naturais análogas nos dois lados do
Atlântico: savanas na África e cerrados no Brasil; floresta amazônica de um
lado, e a floresta congolesa e guineense do outro; também encontramos
manguezais nas duas margens do grande oceano; outra similaridade são as
formações lagunares, as vegetações de espinhosas e campos limpos; isto sem
contar os tipos de solo e características climáticas, que fundamentalmente
explicam as identidades e similaridades da natureza brasileira e africana. Exatamente
por esta razão encontramos muitas, mas muitas mesmo, variedades de
plantas que foram trazidas da África e se tornaram brasileiras de corpo e alma.
Seria quase impossível reconhecer o ambiente brasileiro de hoje na ausência de
espécies oriundas do continente irmão ou que lá primeiramente se aclimataram
antes de chegar ao solo brasileiro.
Fato incontestável, porém raramente
lembrado, as plantas trazidas do continente africano ajudaram a modelar o
espaço brasileiro de um modo irreversível. Dentre outras espécies trazidas da
Mãe África, podemos mencionar: o coqueiro, a banana, a ráfia, o karitê, a
manga, a cevada, a camomila, o milhete, a melancia, o tamarindo, a bucha, o
jiló, a mamona, a espada de são Jorge, o chapéu de praia, o boldo, o inhame, o hibisco,
o dendê, a jurema, a liamba, o sorgo, o painço, o guandu, o quiabo, a
malagueta, o manjericão, a babosa, o gengibre, o maxixe, a violeta, a figueira,
a papoula, etc.
Recordemos que esta relação poderia ser
prolongada com dezenas ou mesmo centenas de outros itens. Por exemplo, a
implantação da pecuária contou com muitas espécies de capim que foram
transplantadas para cá. Quando as pessoas olham para as pastagens do meio rural
brasileiro, estão na realidade diante de uma paisagem onde a África está presente.
Os nomes de muitas gramíneas comprovam isso: Capim Quênia, Kikuio, Guiné,
Tanzânia, etc. Tomamos café de manhã, desfrutamos do seu sabor. Pois bem, este
gosto tem origem na África. Ele é proveniente da Etiópia, da região de Kaffa,
que como vocês podem perceber, explica o nome desta planta notável. Quando
tomamos cerveja, ninguém recorda que esta bebida já era consumida no Egito
antigo, isto é, na África. Aí eu perguntaria: é possível conceber o mundo
moderno sem café e sem cerveja?
Outro detalhe interessante é que somos o
país que mais consome arroz no mundo fora da Ásia, uma tradição que muitos
imaginam ser oriunda dos imigrantes orientais, coreanos, chineses e japoneses.
Mas não é nada disso. Quem nos ensinou a gostar de arroz foram os africanos e
não os asiáticos. E não só gostar: foi com os africanos que aprendemos a fazer
o arroz. Em muitas regiões da África ocidental, o arroz é feito do mesmo modo
que no Brasil. Um refogado de alho e cebola ao qual se adiciona o cereal
lavado, sal e água. Para completar, as mudas que garantiram a expansão pioneira
da rizicultura no Brasil eram provenientes da África e não da Ásia.
Trata-se de uma variante africana conhecida ainda hoje em muitos pontos do
território nacional como arroz quilombola, um arroz da resistência, um arroz
que permaneceu recordando o vínculo ancestral com as terras do outro lado do Atlântico.
Como lembra o historiador Alberto Costa e
Silva, a escravidão, cujos nefastos significados tanto marcaram a história dos
africanos e dos afro-descendentes, não trouxe apenas força de trabalho para a
monocultura. O comércio de escravos trouxe pessoas em carne e osso, com
coração, inteligência, com sua própria fé religiosa,com sentimentos. Trouxe sua
cultura enfim. O Atlântico tornou-se durante séculos uma estrada líquida
através da qual muitas influências do continente passaram a medrar no nosso
país.
Fato pouco recordado, o Brasil importava
sabão da África, principalmente por conta dos bons hábitos de higiene dos
escravos. Nos navios, se transportavam fardos de panos da costa, que atendiam
um mercado formado pelos africanos e seus descendentes. Chegava igualmente a
noz de cola, que em razão do seu efeito estimulante, ajudava a amenizar as
dores do chicote e da dureza do trabalho escravo. Além disso, este fruto, que
chegava a nós em carregamentos procedentes do Golfo da Guiné, tinha - como
ainda tem - um papel privilegiado nas religiões que continuaram, aqui no
Brasil, a honrar as divindades religiosas vindas do outro lado do Atlântico.
Para quem não sabe, trata-se do obi,
de proeminente papel nas religiões afro-brasileiras.
Outra informação, registrada pelo
antropólogo Câmara Cascudo em sua notável obra História da Alimentação no Brasil,
é que muitas espécies vegetais e animais foram aqui introduzidos enquanto
verdadeiras armas da resistência negra. Aí notamos o papel dos babá ossaym 5, peritos
em ervas que em muitos casos encomendavam ingredientes do outro lado do
Atlântico para elaborar o que era chamado de “amansa senhor”, venenos que
tiravam de cena - para sempre - os senhores de terra e outros que espezinhavam
os escravos. Inúmeras destas espécies contrabandeadas se aclimataram e quando
as vemos, nem sequer passa pela nossa cabeça que elas viajaram por vigorosos
braços de mar antes de alcançarem as nossas praias e se tornarem brasileiras.
Mais uma referência comum que a África
compartilha com o Brasil é o fato de constituir um formidável manancial de
riquezas naturais. O continente concentra três países mega diversos: Madagascar,
a República Democrática do Congo (RDC) e a República da África do Sul (RSA).
São africanos cinco conhecidos exemplares de mega fauna: o hipopótamo, a
girafa, rinoceronte branco, rinoceronte negro e o elefante. Muitas espécies de
cereais e de outras plantas domesticadas pelo homem são originárias de regiões
como o planalto da Abissínia, na Etiópia, um dos mais proeminentes viveiros de
espécies úteis para a humanidade. O continente é um grande espaço produtor de
café, chá, cacau, borracha, vinho, bovinos, ovinos, lã e madeira.
O subsolo da África é espantosamente
prodigioso. As jazidas de minérios fazem com que muitos países africanos se
destaquem na produção de diversos itens importantes para a indústria mundial. A
RSA é a 1ª colocada na produção de ouro, 2ª em manganês, 3ª na de urânio, 6ª na
de carvão e 8ª em ferro; a Namíbia, é o 5º produtor mundial de urânio,
enquanto que o Níger é a 7ª colocação e o Gabão, a 8ª; a RDC é o maior produtor
mundial de diamantes; a Guiné Conacri, a 3ª maior produção de bauxita. No caso
do minério de manganês, o Gabão ocupa a 6ª posição, Gana a 8ª, a RDC a 9ª e
Nigéria a 10ª. A África atende atualmente por quase um quarto das necessidades
norte-americanas de petróleo. Por fim, num mundo que se defronta com a questão
do stress hídrico, sete
países africanos - a saber: Angola, Camarões, Chade, Mali, Gabão, Congo e RDC-
são potencialmente provedores mundiais de água doce.
Esta pujança justifica que os africanos
considerem seu continente como uma verdadeira arca do tesouro, regurgitando de
riquezas, cobiçadas pelos europeus já nos primórdios das chamadas “grandes
descobertas”. Imbuídos do desejo de tomar posse destes recursos, fez se
necessário construir uma argumentação que legitimasse um regime de dominação.
Neste sentido, para explorar o trabalho
das populações locais e se apossar dos bens naturais do continente, os europeus
procuraram a todo custo provar uma pretensa incapacidade dos povos africanos em
criar cultura e tirar proveito destas riquezas. Era necessário demonstrar que a
civilização estava ausente da África e que o homem branco deveria, para o
próprio bem das populações locais, dominar o continente. A mitologia
cultivada pelos círculos preocupados em saquear a África não tardou em
contaminar a cultura europeia como um todo. Tornou-se um dado amplamente
assimilado pelos mais diversos grupos sociais, posteriormente repassado para os
contextos nos quais a civilização ocidental esteve presente.
Deste modo, ainda hoje podemos identificar
estigmas seculares num variado universo de peças culturais. Basta prestarmos
atenção ao que acontece a nossa volta. Exemplificando, poucos anos atrás foi
divulgada uma propaganda da Hellmans acompanhada de uma imagem
estereotipada de um africano, no caso acompanhada de um bordão afirmando que
“até os canibais” iriam comer a maionese desta empresa.
Ora, trata-se do velho mito dos africanos
comedores de gente, uma fábula perversa que remonta a muitos séculos atrás e
que mesmo em pleno século XXI, ainda encontra quem consiga acreditar nela.
Aliás, quem não conhece a imagem de africanos rodeando um caldeirão fervente
cozinhando algum infeliz explorador europeu, profusamente encontrada em
inúmeros desenhos animados? Quem desconhece a imagem da africana com uma tíbia
no cabelo a guisa de enfeite? Quem é que nunca assistiu filmes de terror tendo
a África por cenário? Ou deixou de ler história em quadrinhos estigmatizando as
religiões tradicionais do continente? Quem não conhece personagens como o
Tarzan, o Fantasma e o Mandrake, todos claramente constituindo formas pouco
sublimadas que expressam o mito colonialista da inferioridade do homem negro?
Esta industria cultural racista não
deixou, é óbvio, de dedicar-se de modo apaixonado em negar qualquer traço de
civilização relacionado com a África e seus povos por meio de uma literatura
considerada “científica”. Pode-se resumir esta determinação pelo paradigma de
que nada é devido aos africanos. Eles nada criaram, nada construíram e nada
descobriram. A África enfim, não serve para nada.
Existe uma intensa propaganda que celebra
o conjunto megalítico do Stonehenge,
na Inglaterra. Todos os anos, milhões de turistas visitam este notável
alinhamento de grandes rochas talhadas pelo homem pré- histórico. Mas quantos
aqui nesta sala sabem que na África existe uma disposição megalítica que é,
pelo mínimo, mil anos mais antiga? Quantos aqui ouviram falar do conjunto de Nabta Playa, localizado em
pleno centro da Núbia? Quem ouviu falar dele? Uma vez mais, a lacuna de
informação revela muito do intuito da máquina midiática existente!
Por outro lado, mesmo quando diante de
contribuições indiscutivelmente enraizadas no continente, note-se que estas
foram analisadas por “especialistas” como estranhas ao contexto africano.
Teriam sido importadas ou imitadas de outros povos, todos os quais, é evidente,
seriam extra-africanos.
Neste prisma enviesado, os grandiosos
impérios sudaneses do Ghana, do Mali e do Songhai apenas teriam surgido em
razão do contato com os comerciantes árabes muçulmanos; o glorioso reino de
Kuch, não teria origem autóctone, mas sim, seria decorrente da chegada de
chefes brancos líbios, sendo sua decadência, explicada pela miscigenação com
“elementos negroides”; os famosos bronzes do Benin, de acordo com
críticos de arte britânicos, seriam obras de encomenda de reis negros,
entretanto, executadas por artífices estrangeiros - árabes e persas - em vista
de, é claro, ser impossível aos negros africanos a elaboração de refinadas
peças de arte, algo considerado fora de cogitação.
E o que dizer então da civilização
egípcia? o Egito faraônico, não teria nada, absolutamente nada a ver com a
África! Isto a despeito da própria geografia explicar o povoamento e o
surgimento desta civilização a partir das levas de populações que fluíam pelo
Nilo do interior do continente na direção do Mediterrâneo. Isto sem contar que
os traços de muitos egípcios denunciarem ainda hoje contatos de longa data com
populações do interior do continente.
Todavia, a ciência europeia teimosamente
explicou que o Egito seria uma civilização branca, e dependendo do pesquisador,
até mesmo ariana. A produção tradicional de Hollywood se incumbiu da tarefa de nos
apresentar faraós bancos, loiros e de olhos azuis. A gente começa até a pensar
que o Egito antigo era povoado por suecos e alemães! Quanto ao povoamento do
Egito, em desafio completo às pré-condições geográficas, este teria ocorrido,
imaginem só, da foz na direção da nascente do Nilo. Isto é, no sentido contrário ao seu
fluxo, um caso único em todas as grandes civilizações erguidas em
vales fluviais... Seria o caso de indagar: como foi possível a ciência europeia
chegar a este ponto?
É de se notar que a apaixonada
determinação em escavar objeções cujo pano de fundo é o racismo e uma visão
preconceituosa da África e dos africanos, não encontra paralelo para nenhuma
outra situação. Por exemplo, nenhum estudioso põe em dúvida que o profundo
conhecimento matemático dos babilônios e dos maias foi eminentemente endógeno,
ou seja, fruto de um dinamismo histórico-social próprio. Ninguém põe em questão
a origem dos avanços técnicos dos chineses ou do mundo muçulmano.
Mas no caso do Grande Zimbabwe os
colonialistas da extinta Rodésia, ao depararem com as formidáveis ruínas
desta civilização, não se sentiram nem um pouco constrangidos em argumentar
como tais construções teriam sido erguidas. Acintosamente, eles apelaram para a
Bíblia: a grande metrópole teria sido obra dos fenícios, encaminhados para o
interior da África a mando do Rei Salomão em pessoa. Mais grave ainda, em
seu afã em demonstrar que as ruínas do Grande Zimbabwe tiveram origem estrangeira,
os “arqueólogos” rodesianos se incumbiram de “limpar” as ruínas do que foi
categorizado como “lixo dos negros”. Isto é, premeditadamente eliminando sinais
que justamente comprovavam que esta civilização se desenvolveu a partir de
populações locais bantu.
Todavia, ninguém pode se deixar enganar
sobre o intuito real destas explicações aberrantes. Apesar de tudo o que se
fala do continente ele desperta enorme interesse. As potencialidades da África
foram e continuam a ser importantes para o mundo todo. Ou será que o
presidente Bush visitou a Libéria a troco de nada? E as intervenções
estrangeiras realizadas na África, estariam elas movidas por interesses
humanitários, desvinculadas de ambições materiais? E se a África não tem nenhum
valor, como explicar que os colonialistas tiveram que ser expulsos de muitos
países do continente apenas depois de prolongados processos de guerras de
libertação? O fato é que o preconceito racial mascara uma enorme cobiça pela
capacidade produtiva e pelo potencial que o continente suscita. Desqualificar
caminha de mãos juntas com dominar e tomar posse. Não esqueçamos o sábio ditado
pelo qual ninguém chuta cachorro morto. Isto
simplesmente não existe.
Creio que é neste ponto que podemos pensar
uma ampliação e um aprofundamento da nossa relação enquanto brasileiros com a
África. Como deve ter ficado evidente ao longo do curso que vocês acompanharam,
a política de ação afirmativa, o decreto nº. 10.639 que torna obrigatório o
conteúdo da afro- educação e a abertura do país para o continente, são
interfaces complementares entre si. Elas são interdependentes entre si: uma não
existe sem a outra.
Outro dado é que o Brasil e a África vivem
problemáticas comuns, que podem ser vencidas conjuntamente. Gosto sempre de
lembrar que o jornal O Estado
de S. Paulo, numa matéria publicada no ano passado, mostrou, para
espanto de muitos leitores, o quanto a realidade urbana brasileira não se
diferencia, concretamente, daquela que caracteriza o continente irmão. A
reportagem que estou citando não deixava por menos. Ela registrava que o Brasil
não propriamente se igualava, mas
ultrapassava muitos países da
África em quesitos como a desigualdade social, no geral
interpretada pelo senso comum como típica
do continente africano6. Ou seja, mais
do que supõe a vã consciência das nossas elites e da nossa classe média, o
Brasil é mais semelhante com a África do que comumente se imagina.
Para melhor ilustrar, vou comentar uma
experiência que eu tive. Um dia durante uma aula, pedi para meus alunos
começarem a enumerar palavras que consideravam pertinentes sobre o continente.
Citaram a fome, guerras, doenças, miséria, corrupção. Um dos alunos até mesmo
citou que na África existiam “cidades inviáveis”. Aí eu disse: fome, violência,
desigualdade e corrupção dos políticos - na
África? Cidades inviáveis - na
África? Puxa vida, vocês não conhecem outra realidade onde este tipo de
problemas também ocorre? É necessário dizer o nome do país em questão? Vocês
não o conhecem? Afinal, onde é que vocês moram?
Acredito, pois que precisamos mudar nosso
mapa mental, entender que a África é nossa parceira e que a questão da
afro-educação interessa a todos os brasileiros, sejam eles afro-descendentes ou
não. Tenho sido insistente em colocar que não construiremos uma cidadania real
no Brasil deixando de lado o quanto nossa identidade nacional se associa à
África. E o quanto esta expectativa se articula com a busca da verdade, uma
verdadeira redescoberta da
África, pondo em cheque os mitos e as inverdades tecidas contra o
continente, seus povos e suas culturas.
Por isso mesmo, neste momento final da
minha conferência, gostaria de recordar um excelente conto dos Ioruba, etnia
que habita a Nigéria e o Benin, sobre a criação do mundo. Numa linguagem
metafórica, ele esclarece muito dos desafios que devemos enfrentar neste
caminho. Senão vejamos:
Olofi, o Senhor que tudo criou - o bem e o
mal, o bonito e o feio, o claro e o escuro, o grande e o pequeno, o cheio e o
vazio, o alto e o baixo - criou também a Verdade e a Mentira.
No entanto fez a Verdade forte, marcante,
bela, luminosa; e fez a Mentira fraca, feia, opaca. Ao ver assim a Mentira, deu
a ela uma foice com a qual pudesse se defender.
A Mentira sentiu inveja da Verdade e queria
eliminá-la. Certa ocasião a Mentira se defrontou com a Verdade e a desacatou.
Brigaram. Empunhando sua foice, a Mentira, com um golpe, degolou a Verdade.
Esta, vendo-se sem cabeça, começou a
procurá-la tateando por volta. Apalpa um crânio que supõe ser seu. Com esforço
agarra-o e o arrancando de onde estava, coloca-o sobre seu pescoço. Mas aquela
era a cabeça da Mentira.
DESDE ENTÃO, A VERDADE ANDA POR AÍ
ENGANANDO TODA A GENTE.
Pelo que é possível perceber, existe muito
trabalho pela frente, pois tudo foi invertido, virado de cabeça para baixo.
Então, comecemos imediatamente a esclarecer as pessoas. Partamos também para
afirmar nossos vínculos com a África e, portanto, com nós mesmos, brasileiros
de todos os rincões e de todas as origens.
Conforme vocês aprenderam no curso, não é
possível dissociar africanidade de brasilidade. Creio que é isso. Sigamos esta
orientação com determinação e vontade.
Muito obrigado pela atenção e até a
próxima!
(Aplausos)
1 MAURÍCIO WALDMAN é jornalista, professor universitário e
antropólogo africanista. Na sua trajetória constam graduação em Sociologia (USP, 1982), mestrado em Antropologia (USP,
1997), doutorado em Geografia (USP, 2006), pós doutorado em Geociências
(UNICAMP, 2011), pós doutorado em Relações Internacionais (USP, 2013) e pós
doutorado em Meio Ambiente (PNPD-CAPES, 2015). Waldman atuou como consultor
internacional da Câmara de Comércio Afro-Brasileira e professor nos cursos de
capacitação do Centro de Estudos Africanos da USP. Colaborador do Jornal
Cultura (Luanda) e da revista Brasil-Angola Magazine (São Paulo) e autor de
dezenas de textos centrados no temário de África e Africanidades, Waldman é
coautor de Memória D’África: A temática africana em sala de aula (Cortez
Editora, 2007), obra de referência no campo africanista. Mais Informação: Portal
Professor Maurício Waldman - www.mw.pro.br; Currículo CNPq-Lattes - http://lattes.cnpq.br/3749636915642474; Verbete na Wikipédia English edition - http://en.wikipedia.org/wiki/Mauricio_Waldman. Contato E-Mail: mw@mw.pro.br (Nota Biográfica da Edição de 2016)
2 Note-se que a terminologia “tribal”,
comumente aplicada para a organização social do continente, terminou
transformada em um sério expediente de manipulação.
Por exemplo, quando ocorrem conflitos com grupos minoritários na França (caso
dos bretões) ou na Espanha
(bascos, catalães), a imprensa se refere a conflitos regionais, ou
ainda, culturais; no caso do confronto dos chechênos com o governo
russo, os meios de informação falam a respeito de conflitos étnicos;
Porém, quando o palco dos conflitos é a África, aí sim teríamos os
malfadados conflitos tribais.na África.
3 No Antigo Testamento, Cam, um dos filhos de Noé - considerado ancestral bíblico das populações africanas - teria zombado do
pai, recaindo sobre ele o estigma da escravidão (Gênesis, 9:23-27). Por
outro lado, ressalve-se que não consta nenhuma indicação bíblica de que Cam
fosse negro. Na Bíblia, os camitas referem-se a um conjunto de povos muito
diferentes entre si, incluindo desde populações identificadas com a orla
africana do Mar Vermelho e outras populações entendidas como levantinas e/ou
mesopotâmicas (Cf. Gênesis, 10:6-20)
4 Gerhard Mercator é a forma latinizada como o geógrafo flamengo Gerhard Kremer (1512-1594), considerado pai da cartografia moderna, tornou-se conhecido.
5 Ossaym no caso é uma clara referência ao orixá das ervas,
considerado muito poderoso tanto na África como no Brasil.
6 “Relatório sobre o Estado das Cidades
Mundiais 2008/09, divulgado ontem pela ONU, mostra que a desigualdade nas
maiores cidades da América Latina está no mesmo nível de um conjunto de
26 cidades africanas. O grupo de 19 cidades da América Latina e do Caribe
apresentou coeficiente Gini de 0,55, ante 0,54 para as 26 cidades africanas
selecionadas pela ONU. São Paulo está no mesmo nível de Bogotá (0,61), na
Colômbia, mas o índice na capital foi superior, por exemplo, ao de Nairóbi
(0,59), no Quênia” (OESP, 23/10/2008, Metrópole, P. C12).
ÁFRICA & AFRICANIDADES:
TÍTULOS DE MAURÍCIO WALDMAN PUBLICADOS PELA EDITORA KOTEV
Os debates sobre
ÁFRICA & AFRICANIDADES são um pilar central de atuação da EDITORA KOTEV,
publicadora digital que entrou em atividade em 2016.
Saiba
mais sobre esta vertente editorial da EDITORA KOTEV.
Conheça
os títulos do Professor MAURÍCIO WALDMAN no campo de ÁFRICA & AFRICANIDADES
publicados em 2016 pela KOTEV:
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